Por lei, o único seguro obrigatório é o de incêndio - que qualquer proprietário tem de adquirir, mesmo que não recorra a crédito. Já para quem precisa de um empréstimo, as instituições financeiras exigem aos mutuários que contratem um seguro multirrisco (que inclui outras coberturas além de danos por incêndio) e um seguro de vida. E nesse processo garantem um "spread" mais baixo se o potencial cliente adquirir os seguros no próprio banco - um fenómeno que também pode ser lido ao contrário: o "spread" será mais alto se não o fizerem.
Note-se que a legislação em vigor nesta matéria, que data de 2009, já dá, a quem pede de crédito, a liberdade de recorrer a seguros da sua preferência. No entanto, é omissa relativamente aos casos em que o acesso a seguros é condicionado através de garantias de um "spread" mais baixo.
O Governo nunca explicou a iniciativa em detalhe - o Ministério das Finanças, responsável por esta medida específica, não respondeu em tempo útil aos vários contactos do Negócios, feito ao longo dos últimos dias para esclarecer o tema.
Já a Associação Nacional de Agentes e Corretores de Seguros (APROSE), que ao longo dos anos tem insistido neste tema, garante que o objetivo era exatamente inibir estes condicionamentos.
Segundo o presidente da associação, os bancos recorrem a práticas pouco transparentes para "manter as pessoas presas" aos seguros vendidos pelas instituições financeiras, não apenas na celebração dos contratos, mas ao longo da vida dos empréstimos. E fazem-no, diz David Pereira, "através da ameaça, do aumento do ‘spread’. É uma prisão para os clientes bancários", insiste.
Poupança de 300 euros
O tema é caro à APROSE, que em 2023 viu uma medida semelhante ser quase aprovada no âmbito do Orçamento do Estado para 2024. Faltou o "quase". Caiu no debate na especialidade, com os votos contra do PS.
Cinco meses depois, aplaudiu a iniciativa que o novo Executivo da Aliança Democrática incluiu no “Construir Portugal”, para agora lamentar que o anúncio não tenha saído do plano das intenções.
Até porque, segundo um estudo que a associação liderou em 2023, as famílias portuguesas poderiam reduzir os custos com estes seguros a metade do que pagam atualmente aos bancos se pudessem "contratar fora do banco" sem penalizações no"spread". A poupança média seria de 300 euros por ano se substituíssem os seguros que contrataram nos bancos por outros no mercado. O total, com um milhão de mutuários no país, atingiria 300 milhões.
E haverá casos em que o ganho é maior: nas contas da APROSE, pode ultrapassar 500 euros por ano num financiamento de 240 mil euros.
Um bolo de 845 milhões
No panorama atual os bancos têm mais de 70% da produção de seguro risco vida (609 milhões de euros de um total de aproximadamente 845 milhões), tipicamente associados ao crédito à habitação, com os restantes cerca de 237 milhões de euros a serem vendidos por mediadores ou em canal direto das seguradoras.
É quase o inverso do que se passa noutros mercados seguradores no próprio país, nota David Pereira. "Natural seria o que acontece no seguro automóvel ou de acidentes de trabalho. 25% para a banca e 75% para a mediação."
PESO DOS BANCOS EM QUEDA, MAS HÁ MUITA INÉRCIA
A banca domina o mercado de seguros vida risco, tipicamente associados ao crédito à habitação: em 2024 vendeu 72% do total. Mas o peso tem caído.
Os bancos dominaram a venda de seguros associados ao crédito à habitação. Mas com importância decrescente: o peso das instituições financeiras na contratação de seguros de vida tem vindo a cair.
Dados da Associação Portuguesa de Seguradores (APS) mostram que, desde 2017, o sistema bancário nacional perdeu 5 pontos percentuais na proporção que representa a contratação de seguros de vida risco (tipicamente associados ao crédito à habitação): em 2017 vendiam 77% (ou 557 milhões de euros) das apólices, valor que tem vindo a diminuir quase todos os anos e que atingiu 72% no (609 milhões de euros) no fim de 2024.
“Há uma tendência, no médio e longo prazo, de o canal bancário ser menos relevante e o canal não bancário - agentes ou o canal direto - ter um crescimento", observa o presidente da APS em declarações ao Negócios. "Uma das tendências no crédito à habitação – e que de alguma forma influencia o comportamento dos consumidores na compra de produtos associados, como os seguros – é que hoje em dia os intermediários de crédito têm uma preponderância maior numa fase de aconselhamento ou até na própria contratação de um crédito" entende José Galamba de Oliveira.
Mas esse não é o único motivo: a evolução pode ficar também adver-se à inação do cliente bancário português, acredita José Galamba de Oliveira. "A inércia explica boa parte do comportamento dos consumidores", diz, realçando também o problema da baixa literacia financeira da população. ”As pessoas não estão suficientemente alertas para o facto de poderem procurar alternativas no mercado para os produtos associados àquele crédito, com vantagens mais competitivas", acrescenta.
O fenómeno pode também ser explicado com a forma como os bancos comercializam estes produtos, garantindo taxas de "spread” mais baixas se os mutuários contratarem e mantiverem a apólice junto da instituição financeira. Ou, de outro ponto de vista, mais altas se contratarem o seguro "fora". A medida anunciada pelo Governo em maio de 2024 abordaria este domínio, em termos que nunca foram explicados. O presidente da APS prefere não comentar nem revelar expectativas sobre a medida anunciada, mas ainda não implementada.
QUEDA EM QUASE TODOS OS ANOS
Percentagem de seguros de vida risco vendidos através dos bancos
A banca continua a dominar a produção de seguros de vida risco, tipicamente associados ao crédito à habitação, mas esse peso tem vindo a cair ao longo dos anos, com 2023 a ser a única exceção. Em 2024 foi 72%.
Negócios 3/02/2025